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Da Constituinte às redes: povos indígenas inauguram nova era da comunicação no Brasil

Nos anos 1980, durante a redemocratização, os povos indígenas se organizaram nacionalmente para garantir na Constituição de 1988 os direitos territoriais e culturais que ainda hoje protegem sua existência. Quase quarenta anos depois, uma nova articulação histórica emerge: não mais nos corredores do poder em Brasília, mas nos fluxos de informação que moldam a opinião pública e o debate climático global. A comunicação se transformou no novo campo de batalha.

Entre 28 e 31 de agosto, mais de 100 comunicadores de 62 povos indígenas de todo o país se reuniram na Casa Maraká, em Belém do Pará, para o primeiro Encontro Nacional de Comunicação Indígena (ENCI). O evento foi uma realização da Mídia Indígena e do Ministério dos Povos Indígenas, com participações também da Colômbia, Panamá e Guatemala, marcando um momento histórico de articulação coletiva, formação e intercâmbio de experiências. O encontro preparou os comunicadores para a COP30, a conferência internacional sobre mudanças climáticas que ocorrerá na capital paraense em novembro, com o objetivo de assegurar que os povos indígenas sejam protagonistas nas discussões climáticas globais, ampliando suas vozes e fortalecendo suas narrativas no debate público.

“É um marco histórico tanto para a comunicação quanto para o movimento indígena”, avalia Erisvan Guajajara, jornalista e um dos coordenadores da Mídia Indígena, rede que promoveu o encontro.

“No Brasil somos mais de 305 povos, cada um com sua especificidade. A comunicação se uniu aqui com 62 povos, algo inédito. Conseguimos ouvir todos nos grupos de discussão e entender como pensam. São mentes que pensam o futuro, apostam em uma comunicação que não se vende, que sai do território para o mundo e acredita que a revolução precisa partir de quem protege o território: ribeirinhos, quilombolas, ativistas, pessoas que acreditam num mundo de bem viver para todos.”

O evento impulsionou a mobilização de um coletivo nacional de comunicação coordenado pela Mídia Indígena, que comemora uma década de atuação. A chamada pública da organização no Instagram recebeu mais de 1.200 inscrições, e a partir desse engajamento foi estruturado um grupo de articulação dividido por biomas e gênero, assegurando a representatividade das diversas vozes indígenas. A iniciativa visa consolidar uma rede que construa a comunicação a partir das bases do movimento indígena, valorizando lideranças locais e os contextos específicos de cada povo, projetando as lutas indígenas para além das fronteiras nacionais em um momento crucial em que o planeta debate sua sobrevivência frente à crise climática.

“A sociedade ainda precisa se aproximar mais da pauta indígena. E os povos indígenas têm essa missão de dialogar com a sociedade, de mostrar como nós juntos podemos fortalecer e garantir o futuro do planeta, para garantir um planeta verde, um planeta de ar puro para todos. A gente luta por nós, pelos nossos ancestrais e pelas futuras gerações”, destaca Erisvan.

Protagonismo, diálogo e resistência
O evento destacou a comunicação indígena como um espaço estratégico de protagonismo, diálogo e resistência. Para os participantes, não se trata apenas de noticiar fatos, mas de construir narrativas que amplifiquem vozes, fortaleçam alianças e aproximem diferentes públicos da causa indígena.
“Nós, comunicadores indígenas, estamos cada vez mais na disputa das tecnologias, combatendo o racismo com os celulares em nossas mãos e produzindo conteúdos de todas as formas possíveis”, afirma o influenciador indígena Gilmar Mendes Guajajara, do povo Guajajara (MA), que possui mais de 520 mil seguidores apenas no Instagram. “Estamos chegando às casas de centenas de pessoas e conquistando, a cada dia, mais aliados que acreditam que nossos territórios precisam ser protegidos e que nossos direitos devem ser garantidos”.

Para a fotógrafa e criadora de conteúdo Mapei Kokaproti, do povo Gavião (PA), o encontro foi também uma experiência de conexão e aprendizado: “Foi um momento histórico estar com nossos parentes de outros povos e regiões. Atuar na comunicação indígena como mulher é muito importante para levar a nossa voz, que por muitos anos lutamos para ser ouvida”. Ela complementa: “Eu acho muito importante poder denunciar, falar o que está acontecendo, não só sobre o meu território, mas estar junto com os outros comunicadores e compartilhar esses conhecimentos, conhecendo pessoas novas e percebendo que a realidade do meu povo não é a mesma do outro parente, mas que a nossa luta é a mesma”.

Yakawilu Yudjá Juruna, integrante da Rede de Comunicadores Xingu+, acrescenta: “A comunicação chegou para nos ajudar a ampliar nosso conhecimento, levar nossas denúncias e mostrar para os não indígenas que podemos estar onde quisermos. O encontro foi maravilhoso; a fala da [deputada federal] Célia Xakriabá me abriu caminhos. Minha expectativa para a COP é que possamos ter voz de fato, aparecer e levar nossas demandas para dentro desses espaços.”

A ideia é que a Casa Maraká, sede do encontro, se torne um espaço permanente dos comunicadores indígenas.

Eixos
Durante quatro dias, a programação foi organizada em cinco eixos: memória e identidade da comunicação indígena; formação política e técnica de comunicadores; articulação de uma rede nacional; estratégias para a COP30; e criação de campanhas de impacto para dialogar com a sociedade.

As mesas reuniram lideranças como Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas; Célia Xakriabá, deputada federal; Sineia Wapichana, enviada especial para a COP30; e Kleber Karipuna, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), além de organizações como o Instituto Socioambiental (ISA), WWF-Brasil, Greenpeace e Avaaz. A programação incluiu oficinas de produção audiovisual, técnicas de entrevista, preservação de memória, exibição de filmes indígenas e laboratórios criativos de campanhas.

Para Cristian Wariu, do povo Xavante (MT), o encontro representou uma mudança de perspectiva:

“Já nos encontrávamos em vários eventos do movimento indígena, mas sempre cobrindo o que acontecia. Agora fomos colocados de fato como protagonistas para discutir como comunicar sobre povos indígenas. Isso é muito importante porque a diversidade dos nossos povos só pode ser mostrada se houver muitos comunicadores, não um só. O encontro também serviu para mobilizar todos esses atores e já pensar estratégias conjuntas para a COP. Nossa expectativa é chegar muito bem organizados, estruturados e preparados para fazer com que esse momento seja ainda mais histórico”.

Essa preparação coletiva resultou na construção de um plano de comunicação para a COP30, que orientará a produção e articulação de conteúdos pelos comunicadores indígenas durante a conferência climática. A iniciativa vai além da cobertura jornalística: busca garantir que os povos indígenas estejam no centro das discussões climáticas, não como meros observadores, mas como protagonistas das decisões que moldarão o futuro do planeta.

Casa Maraká
O encontro ocorreu na Casa Maraká, espaço que já se tornou um símbolo da comunicação indígena em Belém. O casarão centenário, de construção portuguesa, foi apropriado pelos povos indígenas. “Aqui era uma casa colonial e a gente reformulou tudo para transformá-la na cara dos povos indígenas, na Casa Maraká. É um espaço que reflete nossa identidade e nossas lutas”, explica Erisvan Guajajara.

A Casa Maraká funcionará como um centro de comunicação popular e indígena, abrigando redação, salas de produção audiovisual, galeria de arte com curadoria indígena e auditório para mais de 400 pessoas. Durante a COP30, a ministra Sonia Guajajara terá um espaço para reuniões, e o local sediará debates, oficinas e ações de mobilização. “Através da Casa Maraká, a gente vai se somar também a coletivos não indígenas, para pensar junto e comunicar para todo mundo”, reforça Erisvan.

O objetivo é que a Casa se consolide como um espaço permanente de formação e articulação para comunicadores indígenas e populares de todo o país. Equipado com tecnologia e recursos, o centro permitirá organizar campanhas e protagonizar narrativas que dialoguem com a sociedade de forma estratégica. Durante o encontro, o Ministério das Comunicações doou 30 computadores, garantindo ferramentas adequadas para o trabalho dos comunicadores.

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