Aproveitando o poder da internet, os povos originários estão tomando a dianteira na disseminação de informações de qualidade para suas comunidades e para o mundo exterior.
“No Brasil, se você não tem sangue indígena nas veias, tem nas suas mãos.”
Em batalhas políticas que envolvem terra, identidade e liberdade, a comunicação se tornou uma arma crucial para a defesa dos povos originários, elevando seus comunicadores à condição de guerreiros digitais. Ao utilizar a tecnologia a seu favor, esses indígenas vêm enfrentando a desinformação tanto dentro quanto fora de suas comunidades, por meio de conteúdos jornalisticamente apurados e adaptados ao seu público. Com a ajuda dos algoritmos, as publicações on-line alcançam uma audiência ampla, que inclui tanto apoiadores quanto quem tem pouco conhecimento sobre suas causas.
Essa atuação se tornou mais intensa durante a pandemia, quando a partilha de informações precisas foi essencial para salvar vidas. Apesar da distância física imposta por rios e quilômetros, a internet manteve os povos indígenas conectados e bem informados.

Conexão Ampliada
A rede mundial de computadores já é uma realidade nos territórios originários. Um indicador desse avanço é o aumento significativo de domicílios com acesso à internet na Região Norte, a mais indígena do Brasil. Conforme dados do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), o índice saltou de 24% em 2009 para 83% em 2020.
O plano do Ministério dos Povos Indígenas, estabelecido há aproximadamente dois anos, é expandir ainda mais esse acesso. Utilizando o programa Governo Eletrônico Serviço de Atendimento ao Cidadão (Gesac), o governo federal já instalou mais de 120 pontos de conexão digital voltados para a população indígena. Agora, a aposta está no projeto Aldeia Conecta para continuar essa ampliação.
Os celulares são centrais nesse contexto, pois, de acordo com a pesquisa de 2020 do CGI.br, 65% dos moradores da Região Norte têm nos smartphones seu único meio de acesso on-line.
Adicionalmente, operadoras de telefonia no Brasil contribuem para transformar as redes sociais em um modelo econômico de comunicação, oferecendo planos onde o envio de mensagens de texto, imagens, vídeos e áudios é ilimitado e não consome a franquia de dados.
Isso faz com que aplicativos como o WhatsApp sejam um canal constante de troca de informações. É também por meio dessas plataformas que a desinformação invade os territórios, causando impactos tangíveis na vida das pessoas.
“Quando os parentes precisavam ser vacinados, surgiu fake news de que quem tomasse a vacina iria se tornar jacaré. Muitos povos não queriam se vacinar por acreditar, conforme as crenças culturais, que, de fato, iriam se tornar jacaré. Isso causou um rebuliço nos territórios indígenas, e quem teve que atuar fomos nós, como educadores e comunicadores indígenas”
Tarisson Nawa, jornalista e mestre em antropologia social na Universidade Federal do Rio de Janeiro
A tarefa de informar a população é complexa. Os comunicadores indígenas não se limitam a traduzir as notícias do português para as línguas nativas. Eles reformulam completamente o conteúdo para torná-lo claro e acessível. Na prática, isso resulta na produção de podcasts em diversas línguas maternas, cartilhas educativas e até no uso de carros de som para levar informação de qualidade às comunidades.
Nos bastidores, um sistema colaborativo é mantido: representantes comunitários enviam conteúdo para um centro, que, após a checagem dos fatos, devolve as informações validadas ao território. Essa estratégia é empregada pela Mídia Indígena, o primeiro coletivo brasileiro de comunicadores desse grupo, e pela Rede Wayuri, que atua na região do Rio Negro, no Amazonas.
Quando a comunicação transcende os limites das comunidades, a ação vai além de corrigir termos racistas. O conteúdo produzido por esses guerreiros digitais se transforma em uma ferramenta de conscientização sobre a luta e a importância dos indígenas para o Brasil, particularmente na preservação dos biomas e na promoção de uma agricultura sustentável.
Mídia Indígena
O impulso de retribuir à sua comunidade motivou o jornalista Erisvan Guajajara a fundar o primeiro coletivo de comunicadores indígenas do Brasil, a Mídia Indígena. Desde 2017, o grupo produz conteúdos com o objetivo de democratizar a informação dentro e fora dos territórios. Além da atuação digital, a rede investe na profissionalização de seus colaboradores por meio de oficinas e eventos.
“A comunicação é uma ferramenta de luta, visibilidade e ocupação de espaço para dizer que sempre estivemos aqui. As pessoas estão nos escutando e aprendendo a conviver com os povos indígenas tanto no território quanto em contexto urbano.”
Erisvan Guajajara, fundador da Mídia Indígena
Com mais de 300 integrantes de diversas etnias espalhados pelo país, a Mídia Indígena opera com uma “coordenação” de 10 membros que orientam os parceiros na criação de conteúdo. O coletivo possui duas bases físicas, em Lagoa Quieta (MA) e Imperatriz (MA), equipadas com câmeras e computadores para edição.
A ambição do grupo é ter pelo menos um comunicador em cada povo indígena do Brasil. “Assim, conseguimos o máximo possível de contato para dar visibilidade a todos”, explica Erisvan Guajajara.
Em constante diálogo via WhatsApp, os representantes se dedicam a acompanhar e noticiar tudo o que ocorre nos territórios: desde eventos culturais e avanços econômicos até ataques e protestos sociopolíticos. Antes de qualquer publicação, as informações são revisadas com lideranças e anciões. Esse cuidado também se aplica à verificação de notícias falsas, garantindo que só depois disso sejam desenvolvidas estratégias eficazes de comunicação.
“Procuramos métodos distintos para criação de conteúdo relacionado a cada aspecto abordado. Dessa forma, explicamos de forma objetiva e clara para que todos consigam entender qual é o perigo que os temas podem representar aos territórios indígenas”, pontua Erisvan Guajajara.
O trabalho resulta em carrosséis e vídeos curtos para Reels no Instagram, entre outras plataformas. Para alcançar um público ainda maior, o grupo frequentemente conta com o apoio de celebridades, como a cantora Anitta.
“A gente tá conseguindo chegar nas pessoas e, ao mesmo, tempo levar a informação da ponta para o mundo”
Erisvan Guajajara, fundador da Mídia Indígena
Ação que Preserva Vidas
Durante a pandemia, a Mídia Indígena teve um papel vital ao levar informações sobre a Covid-19 para territórios isolados, superando barreiras de acesso à internet, linguagem e distância. Com o objetivo de salvar vidas, um plano foi traçado para conscientizar sobre a crise global e divulgar a situação dessas comunidades, usando vídeos, podcasts e conteúdos para redes sociais.
“Havia lugares em que não sabiam o que era Covid, nem como se cuidar. Tivemos a ideia de montar um roteiro de podcast com informações em português e entregar para pessoas traduzirem para as línguas indígenas. Quem não tivesse um bom acesso à internet, poderia divulgar no rádio ou compartilhar o áudio”
Erisvan Guajajara, fundador da Mídia Indígena
Essa iniciativa recebeu reconhecimento internacional, destacando a importância do trabalho do coletivo.
Com foco nas eleições de 2024, o grupo mapeou políticos indígenas no Brasil, com a ideia de divulgar e apoiar candidaturas, organizando oficinas sobre como usar a comunicação digital para ganhar visibilidade na corrida eleitoral.
Protagonismo
Ao direcionar os holofotes para as comunidades, a Mídia Indígena divulga depoimentos de lideranças para “mostrar que os protagonistas estão no território e sabem contar a história para se defender”. Isso inclui a postagem de vídeos com entrevistas, que podem conter erros de gravação ou de português formal, e até imagens violentas de ataques contra invasores.
O coletivo também leva a atuação das lideranças na mídia de volta para a própria comunidade, como forma de valorizar seu trabalho, por meio de exposições com slideshows e distribuição de cartilhas com depoimentos.
“Escutar as bases é primordial. Os nossos mais velhos, as nossas lideranças, são a nossa biblioteca de conhecimentos”
Erisvan Guajajara, fundador da Mídia Indígena
Além de fortalecer a presença on-line e comunitária, outro objetivo de protagonismo é estar em Brasília. O próximo passo da Mídia Indígena é, portanto, estabelecer uma base na capital federal.




Rede Wayuri
O nome da Rede Wayuri de Comunicação reflete sua missão: a palavra na língua nheengatu significa trabalho coletivo. Atuando principalmente na região do Rio Negro, no Amazonas, o projeto combate a desinformação dentro dos territórios com produções em áudio, programas de rádio, boletins informativos e ações presenciais.
Como a área é cercada por rios, a troca de informações ocorre majoritariamente on-line, via WhatsApp. No entanto, as atividades são coordenadas presencialmente a partir de São Gabriel da Cachoeira, com comunicadores espalhados por outras microrregiões.
A rede é ligada à Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e conta com assessoria do Instituto Socioambiental (ISA), além de apoio financeiro de entidades nacionais e internacionais.
“Todos nós somos indígenas. Temos os indígenas urbanos e os indígenas que não deixaram a comunidade. Tem que abraçar a causa de todo mundo. Somos um povo só e lutamos por uma causa só”
Cláudia Wanano, jornalista e radialista da Rede Wayuri de Comunicação
Adaptação à Realidade Local
A Rede Wayuri nasceu da necessidade de uma nova estratégia para levar informação clara, apurada e acessível às comunidades. Diferente da linguagem técnica usada por instituições que atuam na região, o grupo se concentra em adaptar a mensagem à realidade local.
Para desenvolver essa estratégia, foi necessário um diagnóstico dos problemas que afetavam o Amazonas. Em 2016, uma onda de desinformação surgiu com promessas de desenvolvimento para explorar recursos minerais e invadir terras. Como defesa, os boletins impressos precisavam de um aliado, e a solução proposta foi criar um novo sistema integrando áudio e internet.
Em 2017, 16 representantes de etnias do Rio Negro, junto com a radialista Claudia Wanano, planejaram a estrutura da Rede com a Foirn. A equipe participou de oficinas de capacitação e, após o treinamento, cada membro retornou à sua comunidade com um celular, uma cartilha e tarefas para manter a prática.
“Sem pressionar e colocar padrões, deixamos cada um criar o próprio roteiro, pensar na própria temática, ou como gostaria de trazer a informação: seja na língua mãe ou em poesia, música. Deixamos eles livres”, conta Cláudia Wanano, jornalista e radialista da Rede Wayuri de Comunicação.
Para superar as barreiras físicas do transporte por barco, a solução foi usar a internet, especificamente o WhatsApp, como meio principal de troca de informações. O contato com os ouvintes também ocorre pelo app, onde grupos formados por lideranças e imprensa recebem links para podcasts, rádio on-line e informativos.
Papel Vital na Pandemia
Este trabalho ganhou importância renovada em outubro de 2020, durante a pandemia, com o surgimento do programa de rádio Papo da Maloca. O programa compartilhava informações apuradas sobre saúde e Covid-19 e abria espaço para lideranças indígenas falarem de seus trabalhos.
“Além do fique em casa, outra missão foi incentivar a vacinação e explicar que era para eles melhorarem. Orientamos e tiramos dúvidas ao lado do pessoal da Fiocruz, e, simultaneamente, um comunicador já ia traduzindo para a língua materna”
Cláudia Wanano, jornalista e radialista da Rede Wayuri de Comunicação
O processo envolvia adaptar a linguagem técnica dos profissionais de saúde para um roteiro popular e, depois, traduzi-lo para a língua materna, frequentemente consultando os anciões para encontrar equivalentes para termos que não existiam no idioma nativo.
Além das ações digitais e de rádio, a Rede Wayuri usou carros de som para distribuir orientações. Esse conjunto de ações foi premiado pelo World Justice Project (WJP) e reconhecido globalmente pela Repórteres Sem Fronteiras como “heróis da informação sobre o coronavírus”.
Devido ao sucesso, o Papo da Maloca, que seria temporário, permanece no ar até hoje, toda quarta-feira.
Novas Ameaças: O Mundo Digital
Com o avanço da internet nos territórios, a luta da Rede Wayuri ganha um novo capítulo. O desafio agora inclui conscientizar sobre segurança digital, fake news e ameaças on-line que podem se tornar físicas. A exposição nas redes gera vulnerabilidade, que, sem orientação, pode causar prejuízos.
Assim como na pandemia, a Rede está preparando programas de rádio, podcasts e cartilhas em línguas maternas sobre o tema. O próximo passo é orientar as comunidades presencialmente sobre os cuidados no ambiente digital, ouvindo seus desafios para criar materiais esclarecedores.
Vozes Individuais: Cristian Wari’u
Desde a infância, Cristian Wari’u foi encorajado a ser um “guerreiro” em defesa de sua cultura. Filho de duas lideranças indígenas, o comunicador usa as redes sociais há 6 anos como ferramenta para combater preconceitos e estereótipos.
Nascido em Campinápolis (MT), o youtuber é do povo Xavante com descendência Guarani. Em suas produções, ele combina essa herança cultural diversa com suas próprias experiências, criando conteúdos educativos que impactam diversos públicos.
Como seu trabalho é o primeiro contato de muitos com o conteúdo digital indígena, Cristian usa fatores de identificação e informação para prender a atenção do espectador e fazê-lo consumir mais desse nicho.
A estratégia surgiu na escola, onde respondia a perguntas racistas e estereotipadas sobre sua cultura por meio de conversas casuais, até que as questões se tornassem uma troca verdadeira.
Unindo essa tática ao seu conhecimento como consumidor de audiovisual, ele criou seu canal no YouTube. Hoje, com um celular e softwares de edição, atua como videomaker, social media, influencer e designer.
Estratégia do Polvo e Saúde Mental
O Brasil abriga 300 povos indígenas, impossibilitando generalizações. O nicho digital de comunicadores é essencial para abordar cada aspecto individualmente, enriquecendo a diversidade de conteúdos on-line e permitindo uma representação mais fiel.
Cristian adota um sistema de “polvo”, onde o centro é um tópico e os “tentáculos” são os assuntos derivados (tradições, valores, línguas, etc.). Focando nos “tentáculos”, ele cria conteúdos com potencial viral que atingem mais pessoas.
Comentários de ódio são uma parte difícil do trabalho. Cristian já recebeu ataques que chegaram a questionar sua identidade. Ele ressalta que, enquanto ele teve um “letramento do que é ser indígena”, muitas comunidades são mais sensíveis ao ódio on-line devido a um histórico de dizimação.
“A nossa presença em redes sociais também alimenta a autoestima de muitos indígenas que, às vezes, não se sentiam representados”, pontua Cristian.
Como cuidado à saúde mental, a Universidade Federal de Brasília (UnB) oferece uma Atlética Acadêmica Indígena, da qual Cristian, estudante de Comunicação Organizacional, faz parte, proporcionando um espaço seguro de lazer e socialização.
Tarisson Nawa: Educação como Empoderamento
Tarisson Nawa percorreu um longo caminho para se tornar o primeiro jornalista indígena formado do Acre. Ele continua investindo em sua formação, com mestrado em Antropologia Social na UFRJ e doutorado em Comunicação na UnB, pesquisando jornalistas indígenas e suas práticas.
O jornalista é o primeiro de sua família nuclear a ter uma graduação, um grande orgulho para ele e sua comunidade. Sua jornada começou na infância, quando migrou para Rio Branco aos 13 anos em busca de estudo.
“Quanto mais diplomação, mais eu consigo contribuir com os meus parentes fora do território, porque é algo que o branco valoriza. Eu sou mestre, faço doutorado, e pessoas já criam um certo respeito, e assim eu posso contribuir para amplificar as vozes dos meus parentes”
Tarisson Nawa, jornalista e mestre em Antropologia Social, na Universidade Federal do Rio de Janeiro
A educação sempre foi um valor em sua família. Seus avós saíram da região do Rio Azul em busca de melhores condições de estudo. Tarisson defende a educação como empoderamento, mas reconhece a luta difícil, já que muitos territórios carecem de professores diplomados pelo sistema não indígena.
Transformação Cultural
A chegada da internet e o acesso à informação reorganizaram os territórios. Ao contrário do receio de perda cultural, o resultado foi uma valorização, como explica Tarisson. As produções de conteúdo indígena na pandemia foram cruciais.
Assim como outros comunicadores, Tarisson atuou no combate à desinformação, criando cartilhas informativas para povos isolados. Muitos parentes que voltaram para os territórios durante esse período tiveram maior contato com as tradições, fazendo com que técnicas ancestrais de produção de medicamentos e cuidados ganhassem protagonismo junto às orientações contra a Covid.